quinta-feira, 21 de julho de 2011

Rodando


 Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem -hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.  

 Adélia Prado

 Texto do esplêndido livro   "Filandras" -  ´Editora Record - pág. 119

Agora, se voces querem conhecer um pouquinho mais dessa pessoa linda que é Adélia, assista essa entrevista.
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Beijos!

12 comentários:

chica disse...

Enqto espero a pancadinha que dura no máximo 15 min, respondo e leio amigos

Lindo texto de Adélia! beijos,chica

Maria Cininha disse...

É Lindo mesmo Lizete. Tenho este livro, adoro o texto e a capa super delicada. Uma boa pedida em uma quinta feira ler um texto como este.

Beijos

pensandoemfamilia disse...

Texto gostoso de ler no caminhar pelaa vida. Gosto muito desta escritora. Feliz escolha.
bjs

Vinicius.C disse...

Boa tarde!!

Algumas delicias são saboreadas assim, devagar- sem pressa.

Adorei seu post!
Muito bom estar aqui, um prazer conhecer seu blog!

Se puder, venha conhecer o Alma- meu blog!

Beijo

Beth/Lilás disse...

Nossa, essa mulher é maravilhosa!
Eu me lembro de ter visto esta entrevista na Globo News e fiquei embevecida com a simplicidade e clareza desta escritora brasileira que tanto nos honra.
adorei rever por aqui.
beijos cariocas


(A imagem dos pássaros já usei lá no meu novo blog em um dos gadgets, obrigada.)

Rozani disse...

Oi, minha querida amiga!
Não sei se vc recebeu meu e-mail do dia dos amigos. Meu pc lá do trabalho foi todo bloqueado para blogs e redes social.Então ñ pude mandar a mensagem pelo blog.Adorei seu post falando da sabedoria oriental.Gostei muito tb das lanternas e outras coisa lindas das fotos.Eu adoro o bairro da Liberdade....mesmo sem conhecer.Tem tanta coisinhas lindas, né? Quando eu fui aí uns anos atrás...ñ deu para ir nessa rua.Eu estava fazendo aquela feira Gift Fair.Ñ sei se vc conhece ou já foi!
Bom, minha amiga, agora vai ser mais difícil falar frequentemente com vc...só aqui em casa!E, eu quase ñ entro no pc aqui em casa.
Espero que esteja bem e um ótimo final de semana.
PS:Pelo trabalho vou falar com vc pelo e-mail.
Bjs,Rozani

maria neusa guadalupe disse...

Adélia Prado é minha conterrânea e amo seus escritos..obrigada pela oportunidade de ouvi-la aqui...beijos gratos.

Blog Luz por Roberta Maia disse...

Que texto maravilhoso, amei de paixão o vídeo de Adélia Prado!!!
Obrigada pela partilha!!!

Tenha um Fim de Semana Abençoado por DEUS e protegido pelos Anjos de Luz!!!

Paz e Luz!!!

Rosane Castilhos disse...

FIQUEI POR AQUI SEGURAMENTE MAIS DE MEIA HORA, AGRADEÇO POR TER TIDO ESTE TEMPO.
LINDAS PALAVRAS E QUE BELA, TÃO BELA ENTREVISTA. A FORMA COMO ADÉLIA PRADO FALA DE DEUS, DE AMOR, DE CASAMENTEO, DE FILHOS...AHHHH!
LAVEI A ALMA, POETICAMENTE FALANDO!!!!
BEIJINHO QUERIDA!

Eliete disse...

Liz querida! Tive a felicidade de conhecer e ouvir Adélia Prado em Ribeirão Preto uns 3 anos atrás na abertura de uma Bienal de Psicanálise.Ela é linda.E ler as ideias dela através deste cantinho é uma grande felicidade. Um lindo final de semana,beijinhos

Rebeca Clemente disse...

OOie Lizete vc nunca mais me visitou,mais eu amo seu Bloguinho,eu li tudo o texto Rodando,uma Historia bem interressante,eu gostei,olha tem uma Receita de cookies la no meu Bloguinho espero que goste,to te esperando,bjs
Rebequinha

Unknown disse...

Oi Liz,espero que não seja nada de grave e que tudo se resolva da melhor maneira!
Sabe eu conheci seu outro blog, tbm estou lá como seguidora, acho lindo Scrapbook mas nunca me aventurei!
Ah! a corujinha é linda né?! mas não sou eu quem faz, quem me dera eu costurasse desse jeito...todo mundo amou, acho que a Ana ganhou mais algumas seguidoras!! rsrs
Bjks querida e bom domingo!